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Velhas vítimas do imperialismo

José Júlio Campos | Professor |

“Velhas vítimas do imperialismo”

Desde que espanhóis e portugueses chegaram à América do Sul, no início do séc. XVI, os povos indígenas desse subcontinente foram sendo sucessivamente submetidos ao domínio europeu, vendo os seus imensos recursos naturais tornarem-se num dos principais fatores de enriquecimento, não só dos povos ditos “descobridores”, mas também de holandeses, franceses, britânicos e outros. A independência e criação dos Estados Unidos da América, no final do séc. XVIII, contribuiu para que muitos desses povos tivessem também lutado pela sua independência, ao longo do séc. XIX, quase sempre à custa de guerras sangrentas. No entanto, independência não significou libertação. Os próprios norte-americanos, pela voz do seu presidente James Monroe, “decretaram”, em 1823, o princípio de “a América para os americanos”. Essa doutrina tem orientado a política externa dos EUA relativamente à América do Sul, nos últimos duzentos anos. A partir do final do séc. XIX, essa política traduziu-se na colocação de governos fantoches em quase todos os países, através de golpes militares e outras formas de intervenção política e domínio económico. Ou seja, depois de terem lutado contra o colonialismo europeu, os povos sul-americanos viram-se obrigados a lutar contra o imperialismo norte-americano. Depois da 2ª guerra mundial, esse neocolonialismo viu-se confrontado pelo apoio soviético às revoluções socialistas que surgiram um pouco por toda a América Latina. Esta transformou-se no palco principal de uma guerra pela hegemonia, entre EUA e URSS, que atingiu o clímax com o episódio da Baía dos Porcos, em Cuba, tendo estado, então, por um fio o estalar de um novo conflito mundial. Recentemente, tem sido a China a tentar intrometer-se naquilo que os norte-americanos consideram “o seu quintal”.

É essa atitude hegemónica dos EUA que explica a maioria dos recorrentes conflitos e golpes que marcam a história contemporânea dos países sul-americanos. Sempre que algum governo não é favorável aos seus interesses ou aos das suas multinacionais, a CIA entra em ação.

O caso mais recente está a passar-se na Bolívia, onde Evo Morales foi eleito presidente em 2006. Chegado ao poder, Morales nacionalizou os hidrocarbonetos e algumas empresas estratégicas, sobretudo na área das telecomunicações. Fez do investimento público a principal alavanca da economia boliviana que passou a ter a maior taxa de crescimento em todo o subcontinente. A nível interno, essa política teve como principais consequências a diminuição das desigualdades e a redução do índice de pobreza, de 60 para 35%, e de pobreza extrema, de 38 para 15%. Segundo dados oficiais como os fornecidos pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o número de pessoas com rendimento médio passou de 3,3 para 7 milhões, numa população que ronda os 11 milhões. A taxa de desemprego passou de 8,1 para 4,2%. No plano social, verificou-se uma redução brutal do analfabetismo e a Bolívia tornou-se num verdadeiro estado social e multinacional. A nível externo, a Bolívia reafirmou a sua soberania e dignidade no contexto internacional, libertando-se das garras do FMI e do Clube de Paris, mediante a aposta no controlo da exploração das matérias-primas e numa governação que resultou sempre na existência de superavit nas contas públicas.

O “problema” é que a Bolívia, entre outras riquezas, tem a segunda maior reserva de gás natural da América do Sul e mais de metade das reservas mundiais de lítio. Estes recursos não passaram despercebidos aos chineses que assinaram, recentemente, um contrato com a Bolívia para a exploração e transformação de lítio. Obviamente, os americanos não apreciaram mais esta intromissão dos chineses “no seu quintal” e, à semelhança do que já acontecera no Brasil, no Equador e noutros, trataram de substituir um governo hostil por um fantoche. Neste caso, o próprio Morales lhes facilitou a tarefa, dando-lhes os trunfos que necessitavam na cena internacional, ao candidatar-se a um terceiro mandato, desrespeitando a Constituição. Apesar disso, o povo acabou por reelegê-lo, por grande margem, não o castigando por esse abuso. Mas esse facto foi aproveitado pelos norte-americanos e pelas elites bolivianas afastadas do poder, para orquestrarem o seu fim, obrigando-o a demitir-se e a fugir para o México, mas fazendo crer à opinião pública nacional e internacional que a renúncia de Morales se devia a uma mobilização popular pacífica contra supostas eleições fraudulentas. Na realidade, tratou-se de um golpe perpetrado pelo antigo presidente Carlos Mesa, pelo empresário de extrema-direita, amigo de Bolsonaro, Luís Camacho, e por uma autoproclamada presidente interina de um partido minúsculo, Jeanine Anez. Curiosamente, a mesma estratégia da autoproclamação, seguida e falhada pelos americanos na Venezuela, com Guaidó!

O que se está a passar na Bolívia, à semelhança de outras regiões do globo, não passa de mais uma batalha na guerra entre dois impérios, que não respeitam regras democráticas, pelo comando de uma nova era de globalização económica. Vamos assistir a mais episódios tão lamentáveis quanto este, nos próximos tempos. Pobres dos povos que continuam a ser vítimas deles.

 

José Júlio Campos

jjfcampos@hotmail.com
pensarnotempo.blogspot.com

Edição 115, 11 de janeiro de 2020

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